domingo, 6 de junho de 2010

O VELHO E O MAR



“Tanto eu esperei para vencer
E agora vejo que perder
Nada mais é do que cansar”


Estes versos de Resolução (música de Edu Lobo e letra de Lula Freire) têm tudo a ver com a luta que lutamos n’O Velho e o Mar, de Ernest Hemingway. Falo de “nós” porque o texto realmente me arrastou para dentro do barco de Santiago, o velhinho em questão. Já era tarde da noite, os olhos pescando, mas pensava comigo: “se ele resiste a três dias batalhando com um peixe “dessa idade”, eu sou capaz de matar esse livro em mais uns minutos...”

A prosa de Hemingway é direta e reta: não usa um vocabulário mais sofisticado do que se encontraria nas páginas de um jornal, não distorce a cronologia dos eventos... e isso contribui para que nos sintamos sempre tão próximos do velho Santiago, solidários a ele, tocados por sua resistência, persistência, amor ao jovem Manolin... Para ajudar, nesta edição da Bertrand Brasil (tradução de Fernando de Castro Ferro) há as lindas ilustrações de C.F. Tunnicliffe e Raymond Sheppard distribuídas ao longo de todo do volume. Alguns não gostam de ilustrações – alegam que limita a imaginação. Pode ser... mas em casos em que o que é narrado afasta-se tanto da minha experiência pessoal, acho ótimo poder contar com mais este estímulo.

Não encontrei nesta primeira leitura uma passagem marcante... no sentido de que se destaque por si. Não: o livro é um todo que se desvela sem grandes arroubos. Sim, há o momento crucial do embate derradeiro com o peixe-espada, mas transcrevê-lo fora do contexto seria inapropriado e de grande mau gosto, de forma que não tenho como colocar um trecho aqui, como faço sempre. O Velho e o Mar é íntegro como seu protagonista. A falta de uma divisão por capítulos, de múltiplas narrativas e de personagens – aliás – me leva a pensar nele como um conto expandido...

A lição que ficou para mim desta história foi: não importa seu ponto de partida, nem onde você deseja ou pode chegar: para além disso, é o sentido que se dá ao trajeto de um ponto a outro que determina o seu grau de satisfação pessoal. É sempre uma questão de ser sincero no que se faz, e assim ser também sincero consigo.

P.S.: Há uns anos assisti no AnimaMundi uma animação maravilhosa baseada nesta história. Cada quadro era pintado a óleo (pode???!!!). Tá no YouTube para que quiser ver.

sábado, 27 de março de 2010

UMA APRENDIZAGEM OU O LIVRO DOS PRAZERES



Era outubro de 2008 e eu acompanhava interessado uma exposição fotográfica na Pinacoteca do Estado, quando me deparei com uma citação decalcada na parede. Foi algo impactante e, pensei comigo: deve ter muito mais disso nesse livro de nome curioso...

Dois anos depois venho a ter a oportunidade de lê-lo por completo nesta reedição da obra de Clarice Lispector encampada pela Rocco. Uma aprendizagem é diferente dos outros livros da autora que já conhecia, Laços de Família e A Hora da Estrela. Mais contemplativo, talvez.

A descrição de sentimentos é para poucos, e Clarice o sabe. Mais que isso: ao ler e falar de amor, ela sugere todo um vínculo com o leitor. Assim como no amor (o Bom Amor), o fundamental não é dito. O acesso a ele é uma decisão deliberada, consentida, despojada de medo – e por isso franca, meditativa. Ao contar esta história de amor, Clarice oferece a oportunidade de entrar em contato vivo com esse universo ficcional ancorado em nossas mais profundas questões. Ler suas 159 páginas foram de fato um grande aprendizado.
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“Sentia que a vida lhe fugia de novo entre os dedos. Na sua humildade esquecia que ela mesma era fonte de vida e de criação.”
(UMA APRENDIZAGEM OU O LIVRO DOS PRAZERES, Pg. 83)

“- Nunca falei tanto, disse Lóri.
- Comigo você falará a sua alma toda, mesmo em silêncio. Eu falarei um dia minha alma toda, e nós não nos esgotaremos porque a alma é infinita. E além disso temos dois corpos que nos será um prazer alegre, mudo, profundo.”
(IDEM, Pgs. 91-92)

“(...) faço poesia não porque seja poeta mas para exercitar minha alma, é o exercício mais profundo do homem.”
(IDEM, Pg. 93)

“Mas já existem demais os que estão cansados. Minha alegria é áspera e eficaz, e não se compraz em si mesma, é revolucionária. Todas as pessoas poderiam ter essa alegria mas estão ocupadas demais em ser cordeiros de deuses.”
(IDEM, Pg. 96)

“Achava agora que a capacidade de sofrer era a medida de grandeza de uma pessoa e salvava a vida interior dessa pessoa.”
(IDEM, Pg. 140)

“Foi nesse estado sonho-vislumbre que ela sonhou vendo que a fruta do mundo era dela. Ou se não era, que acabara de tocá-la. Era uma fruta enorme, escarlate e pesada que ficava suspensa no espaço escuro, brilhando de uma quase luz de ouro. E que no ar mesmo ela encostava a boca na fruta e conseguia mordê-la, deixando-a no entanto inteira, tremeluzindo no espaço. Pois assim era com Ulisses: eles se haviam possuído além do que parecia ser possível e permitido, e no entanto ele e ela estavam inteiros. A fruta estava inteira, sim, embora dentro da boca sentisse como coisa viva a comida da terra. Era terra santa, porque era a única em que um ser humano podia ao amar dizer: eu sou tua e tu és meu, e nós é um.”
(IDEM, Pg. 153)

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

INFÂNCIA




Nunca tinha lido Górki antes de encontrar Ganhando meu Pão em promoção numa livraria. Li o que havia na contracapa e curioso, levei-o comigo. Foi durante o Festival de Música Antiga de Juiz de Fora, ano passado. Gostei tanto da maneira como Górki descrevia as asperezas e epifanias de sua juventude que carregava o livro comigo para todo canto. Até que o perdi (provavelmente num banco de ônibus). Pacientemente, esperei até a Feira de Livros da USP em novembro para, então, comprar o box completo da Cosac Naify que reúne todos os três livros desta autobiografia: Infância, Ganhando meu Pão e Minhas Universidades.

Neste primeiro volume, Górki narra uma dureza que parecia ser norma entre os russos do século 19 e seus ancestrais; ele chega a dizer que a indiferença com que as pessoas lidam com a violência, a fome, e a pobreza são componentes da “alma russa”. Não sei se ele chegou a rever isso, mas o pouco que li de russos me passa mesmo essa idéia: almas que tinham que resistir ao rigor do frio, à escassez geral, enrijecendo os corações e aquecendo-se com vodka.

O livro é repleto de citações populares, folclore e delineia exemplarmente o contexto de uma Rússia ainda muito rural e religiosa frente aos avanços da indústria e do racionalismo.

A tradução, direto do russo, é de Rubens Figueiredo.

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“Se eu não encontrasse o inseto, a avó não conseguia dormir; eu senti como o corpo dela estremecia, entre pequenos sussurros, na escuridão morta da noite, e escutava como ela sussurrava, prendendo a respiração:
- Ela está perto da soleira... Se enfiou embaixo da arca...
- Porque tem medo de baratas?
Ela respondia de forma lógica:
- É que não entendo uma coisa: para que elas existem? Ficam rastejando para lá e para cá, pretas. O Senhor deu a cada corpo uma missão: um tatuzinho mostra que tem umidade na casa; um percevejo significa que as paredes estão sujas; um piolho ataca, quer dizer que alguém vai ficar doente, tudo dá para entender! Mas essas daí, quem sabe que força mora dentro delas, e para que são enviadas?”

(INFÂNCIA, pg.83)

“Vem um desânimo; um desânimo diferente, quase insuportável; o peito se enche de chumbo líquido, quente, pesa por dentro, infla o peito, as costelas; tenho a impressão de que estou inchado feito uma bolha, e me sinto apertado no quartinho, sob o teto em forma de caixão.”

(INFÂNCIA, pg. 115)

"- Escute – disse o Coisa Boa, quase num sussurro, e sorrindo. – Lembra que eu disse para você não vir no meu quarto?
Fiz que sim com a cabeça.
- Ficou magoado comigo, não foi?
- Foi...
- Mas eu não queria magoar você... E não foi assim? Não foi? Entendeu porque eu falei aquilo?
Ele falava que nem um menino da minha idade;
(...)
Meu coração começou a doer de uma forma insuportável.
- Porque nenhum deles gosta de você?
Abraçou-me, apertou-me contra o seu corpo e respondeu, piscando os olhos:
- Sou estranho, entende? É por isso. Não sou como eles...
Sem saber o que dizer e incapaz de falar, eu o puxava pela manga.
- Não fique zangado – repetiu e, com um sussurro no meu ouvido, acrescentou: - Também não é preciso chorar...
E as lágrimas dele mesmo corriam, por baixo dos óculos embaçados.
(...)
Assim terminou a minha amizade com o primeiro de uma série interminável de estranhos em sua própria terra – as melhores pessoas que nela vivem...

(INFÂNCIA, pg. 162-163)

domingo, 3 de janeiro de 2010

MIB: Música Impopular Brasileira #1

“Porquê impopular?” é a primeira pergunta que vem à cabeça quando se lê o título com que batizei essa pequena intervenção musical que, em meio a tanta literatura, passo a inserir. É que sempre me incomodou o fato de certas músicas primorosas passarem despercebidas pelo público, mesmo dentro de um segmento mais antenado com a arte. Felizmente, a internet tem possibilitado cada vez mais o acesso a essa fortuna cultural negligenciada em duas frentes opostas: de um lado, pela ação de sites que disponibilizam acervos de LPs não digitalizados (muitas vezes fruto de acervos pessoais) e, de outro, pela facilidade com que temos acesso à produção recente e que não encontra espaço na mídia convencional, tendo sua obra divulgada via canais de relacionamento como MySpace ou YouTube ou – mais raro – por iniciativas ousadas e originais, como esta da Trama.

Além do mais, música e literatura são irmãs. Assim o sinto, e assim tem-se visto e registrado ao longo de séculos, dos trovadores ao Chico Buarque. Permitam assim, esta licença poética.
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VALSA DA SOLIDÃO

Sendo bem honesto: a única informação que encontrei na net a respeito dessa canção na net, eu já sabia. Ela é produto da parceria de Paulinho da Viola e Hermínio Bello de Carvalho, dado que consta no encarte do primeiro álbum de Roberta Sá, Braseiro. Isso por si só já demonstra a “impopularidade” da música e sua legitimidade neste espaço. E que presença bem-vinda! Este maná chegou a nós pelo violão de Rodrigo Campello (que também cuidou do arranjo), pelo piano eletrônico de Marcos Nimrichter, pelo cello de Hugo Pilger e a voz indescritivelmente sedutora de Roberta.

Do início ao fim, a valsa é sutileza: a vassoura varre o prato, abrindo caminho para o Fender Rhodes que embala a voz de Roberta, em ornamentações sobre acordes de sétima e décima terceira. Toda a trama de dúvidas e hesitações de que a letra nos fala é então amparada pela chegada de um decidido violoncelo. É como se o arranjador nos apresentasse aqui o personagem masculino, origem de todo o abandono de que ela é vítima. Sabe quando colocamos a mão sobre a água, o suficiente apenas para sentir a sua superfície? Ali, naquele limite, é onde se encontram esses sons que mexeram tanto comigo.

Ouvi a versão gravada por Elizeth Cardoso e não titubeio: sou mais essa.

Até a próxima e a todos o meu desejo de que 2010 seja repletos das melhores músicas e leituras.