terça-feira, 5 de janeiro de 2010

INFÂNCIA




Nunca tinha lido Górki antes de encontrar Ganhando meu Pão em promoção numa livraria. Li o que havia na contracapa e curioso, levei-o comigo. Foi durante o Festival de Música Antiga de Juiz de Fora, ano passado. Gostei tanto da maneira como Górki descrevia as asperezas e epifanias de sua juventude que carregava o livro comigo para todo canto. Até que o perdi (provavelmente num banco de ônibus). Pacientemente, esperei até a Feira de Livros da USP em novembro para, então, comprar o box completo da Cosac Naify que reúne todos os três livros desta autobiografia: Infância, Ganhando meu Pão e Minhas Universidades.

Neste primeiro volume, Górki narra uma dureza que parecia ser norma entre os russos do século 19 e seus ancestrais; ele chega a dizer que a indiferença com que as pessoas lidam com a violência, a fome, e a pobreza são componentes da “alma russa”. Não sei se ele chegou a rever isso, mas o pouco que li de russos me passa mesmo essa idéia: almas que tinham que resistir ao rigor do frio, à escassez geral, enrijecendo os corações e aquecendo-se com vodka.

O livro é repleto de citações populares, folclore e delineia exemplarmente o contexto de uma Rússia ainda muito rural e religiosa frente aos avanços da indústria e do racionalismo.

A tradução, direto do russo, é de Rubens Figueiredo.

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“Se eu não encontrasse o inseto, a avó não conseguia dormir; eu senti como o corpo dela estremecia, entre pequenos sussurros, na escuridão morta da noite, e escutava como ela sussurrava, prendendo a respiração:
- Ela está perto da soleira... Se enfiou embaixo da arca...
- Porque tem medo de baratas?
Ela respondia de forma lógica:
- É que não entendo uma coisa: para que elas existem? Ficam rastejando para lá e para cá, pretas. O Senhor deu a cada corpo uma missão: um tatuzinho mostra que tem umidade na casa; um percevejo significa que as paredes estão sujas; um piolho ataca, quer dizer que alguém vai ficar doente, tudo dá para entender! Mas essas daí, quem sabe que força mora dentro delas, e para que são enviadas?”

(INFÂNCIA, pg.83)

“Vem um desânimo; um desânimo diferente, quase insuportável; o peito se enche de chumbo líquido, quente, pesa por dentro, infla o peito, as costelas; tenho a impressão de que estou inchado feito uma bolha, e me sinto apertado no quartinho, sob o teto em forma de caixão.”

(INFÂNCIA, pg. 115)

"- Escute – disse o Coisa Boa, quase num sussurro, e sorrindo. – Lembra que eu disse para você não vir no meu quarto?
Fiz que sim com a cabeça.
- Ficou magoado comigo, não foi?
- Foi...
- Mas eu não queria magoar você... E não foi assim? Não foi? Entendeu porque eu falei aquilo?
Ele falava que nem um menino da minha idade;
(...)
Meu coração começou a doer de uma forma insuportável.
- Porque nenhum deles gosta de você?
Abraçou-me, apertou-me contra o seu corpo e respondeu, piscando os olhos:
- Sou estranho, entende? É por isso. Não sou como eles...
Sem saber o que dizer e incapaz de falar, eu o puxava pela manga.
- Não fique zangado – repetiu e, com um sussurro no meu ouvido, acrescentou: - Também não é preciso chorar...
E as lágrimas dele mesmo corriam, por baixo dos óculos embaçados.
(...)
Assim terminou a minha amizade com o primeiro de uma série interminável de estranhos em sua própria terra – as melhores pessoas que nela vivem...

(INFÂNCIA, pg. 162-163)

domingo, 3 de janeiro de 2010

MIB: Música Impopular Brasileira #1

“Porquê impopular?” é a primeira pergunta que vem à cabeça quando se lê o título com que batizei essa pequena intervenção musical que, em meio a tanta literatura, passo a inserir. É que sempre me incomodou o fato de certas músicas primorosas passarem despercebidas pelo público, mesmo dentro de um segmento mais antenado com a arte. Felizmente, a internet tem possibilitado cada vez mais o acesso a essa fortuna cultural negligenciada em duas frentes opostas: de um lado, pela ação de sites que disponibilizam acervos de LPs não digitalizados (muitas vezes fruto de acervos pessoais) e, de outro, pela facilidade com que temos acesso à produção recente e que não encontra espaço na mídia convencional, tendo sua obra divulgada via canais de relacionamento como MySpace ou YouTube ou – mais raro – por iniciativas ousadas e originais, como esta da Trama.

Além do mais, música e literatura são irmãs. Assim o sinto, e assim tem-se visto e registrado ao longo de séculos, dos trovadores ao Chico Buarque. Permitam assim, esta licença poética.
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VALSA DA SOLIDÃO

Sendo bem honesto: a única informação que encontrei na net a respeito dessa canção na net, eu já sabia. Ela é produto da parceria de Paulinho da Viola e Hermínio Bello de Carvalho, dado que consta no encarte do primeiro álbum de Roberta Sá, Braseiro. Isso por si só já demonstra a “impopularidade” da música e sua legitimidade neste espaço. E que presença bem-vinda! Este maná chegou a nós pelo violão de Rodrigo Campello (que também cuidou do arranjo), pelo piano eletrônico de Marcos Nimrichter, pelo cello de Hugo Pilger e a voz indescritivelmente sedutora de Roberta.

Do início ao fim, a valsa é sutileza: a vassoura varre o prato, abrindo caminho para o Fender Rhodes que embala a voz de Roberta, em ornamentações sobre acordes de sétima e décima terceira. Toda a trama de dúvidas e hesitações de que a letra nos fala é então amparada pela chegada de um decidido violoncelo. É como se o arranjador nos apresentasse aqui o personagem masculino, origem de todo o abandono de que ela é vítima. Sabe quando colocamos a mão sobre a água, o suficiente apenas para sentir a sua superfície? Ali, naquele limite, é onde se encontram esses sons que mexeram tanto comigo.

Ouvi a versão gravada por Elizeth Cardoso e não titubeio: sou mais essa.

Até a próxima e a todos o meu desejo de que 2010 seja repletos das melhores músicas e leituras.