quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

MORTE EM VENEZA


Quem lida ou se interessa por cultura, deve ter ouvido sobre o fechamento do Cine Belas Artes, em São Paulo, e toda a repercussão que este anúncio causou. Ontem, ainda, iniciou-se o processo de tombamento do imóvel, o que pode dar alguma sobrevida ao espaço. Seja lá o que os deuses do cinema reservaram para o Belas Artes, seus organizadores prepararam uma programação de despedida em grande estilo: até o dia 27 de janeiro serão exibidos filmes que marcaram a história do espaço. Entre eles, figura Morte em Veneza, de Luchino Visconti, a adaptação do livro de que, ora em diante, falarei.

O livro de 1922 e o filme de 1971 (que ainda não assisti) têm ao menos uma diferença entre si: no livro de Thomas Mann, o protagonista Gustav von Aschenbach é um escritor, e no filme, um compositor.

O livro é pequeno em páginas, relativamente a outras obras suas como A Montanha Mágica e Doutor Fausto, mas é enorme em significado e expressão. Denso, perpassado por uma atmosfera onírica, Thomas manipula magistralmente elementos que permitem diversos níveis de leitura. O leitor que desejar embarcar nestas águas fruirá de ricos estímulos filosóficos, mitológicos, psicanalíticos, históricos, autobiográficos e turísticos.

A HISTÓRIA

Com a alma conturbada após a visão de uma figura –possivelmente um estrangeiro – o célebre escritor Gustav von Aschenbach decide retirar-se da vida pacata e metódica que leva para respirar outros ares. Acaba sendo conduzido a Veneza (o tempo todo tem-se a impressão de que forças maiores o conduzem a um destino que, desde o título, anuncia-se trágico, nos mesmo moldes dos mitos greco-romanos com seus dii ex-machina). Já devidamente instalado no Hotel Lido, vislumbra, num jantar, a bela figura de um jovem de cerca de 14 anos, Tadzio.

O desenrolar da história mostra como Aschenbach lida com a absurda constatação de que ele, um homem maduro, está apaixonado por uma criança. De que modo a materialização de um conceito de beleza ideal, tão avidamente buscado pelo artista, altera o comportamento e as convicções desse mesmo artista?

Para ser lido, relido, refletido e debatido.

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A edição que li é da Nova Fronteira, de 2010, com tradução de Eloísa Ferreira Araújo Silva. Agora, aos trechos selecionados.

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“Para que qualquer produto intelectual de peso possa surtir de imediato um efeito amplo e profundo , é preciso que haja uma afinidade secreta, uma coincidência entre o destino pessoal de seu autor e o destino anônimo de sua geração. As pessoas não sabem por que elas tornam famosa uma obra de arte. Sem o menor conhecimento de causa, julgam descobrir centenas de méritos para justificar tamanho apreço; mas o verdadeiro fundamento de seu aplauso é algo imponderável, a simpatia. Aschenbach já dissera uma vez, expressamente, embora numa passagem de pouco realce, que quase tudo que existe de grandioso existe como um ‘apesar de’, ou seja, algo que se realizou apesar de preocupações e tormentos, apesar da pobreza, do abandono, da fragilidade física, do vício, da paixão e mil outros obstáculos. E isso era mais que uma simples observação, era uma vivência, era justamente a fórmula de sua vida e do seu sucesso, a chave de sua obra. Sendo assim, seria de estranhar que fosse também a essência moral e a conduta de seus personagens mais característicos?” (MORTE EM VENEZA, pg. 19)

“Quem não teria de combater um ligeiro arrepio, um secreto temor e aflição ao embarcar pela primeira vez, ou depois de muito tempo, numa gôndola veneziana? Esse estranho veículo, herança intacta de tempos medievais e tão singularmente negro como, dentre tudo que existe, só um ataúde pode ser, lembra aventuras criminosas e mudas na noite de águas rumorejantes, lembra ainda mais a própria morte, esquifes e sepulturas lúgubres e a derradeira viagem silenciosa” (MORTE EM VENEZA, pg, 33)

“’Vou ficar’, pensou Aschenbach. ‘Onde poderia estar melhor?’ E com as mãos cruzadas no colo deixou os olhos se perderem na vastidão do mar, deixou seu olhar resvalar, anuviar-se, fragmentar-se na monotonia unicolor da imensidão deserta. Amava o mar por razões profundas: pela necessidade de repouso do artista exausto que, assediado pela multiformidade das aparências, anseia por abrigar-se no seio da simplicidade, da imensidão, e por um pendor proibido, diametralmente oposto à sua tarefa e por isso mesmo tentador, para o indiviso, o desmedido, o eterno, para o nada. Repousar na perfeição é o anseio nostálgico daquele que se esforça por alcançar a excelência; e o nada não é uma forma de perfeição?” (MORTE EM VENEZA, pg.48)

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