sábado, 17 de outubro de 2009

OS CADERNOS DE MALTE LAURIDS BRIGGE



Rilke pra mim representa ser verdadeiramente humano. É cultivar a doçura sem medo da aspereza do mundo; é contemplar a si com ciência e sem armas.

Por isso, e muito mais do que isso, sinto uma satisfação enorme em trazer um texto seu ao Cor et Caput. Já não era sem hora!

Os Cadernos Malte Laurids Brigge é o único romance que Rainer escreveu. É epistolar e autobiográfico, o que de um lado me remete ao Werther de Goethe e, por outro, ao Cartas a um Jovem Poeta, seu livro mais conhecido.

No trecho abaixo, ele nos fala sobre o que acha ser preciso para escrever poesia.

Ah: a edição que estou lendo é novíssima lançada pela L&PM em sua série de bolso.

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"Acho que deveria começar a fazer alguma coisa, agora que estou aprendendo a ver. Tenho 28 anos e não aconteceu praticamente nada. (...) Deveríamos esperar para escrever, e juntar senso e doçura por uma vida inteira, longa, se possível, e então, bem no fim, talvez pudéssemos escrever umas dez linhas que fossem boas. Pois versos não são, como pensam as pessoas, sentimentos (deles temos o bastante na juventude) - são experiências. Por causa de um único verso é preciso ver muitas cidades, pessoas e coisas, é preciso conhecer os animais, é preciso sentir como os pássaros voam e saber com que gestos as pequenas flores se abrem pela manhã. É preciso ser capaz de recordar caminhos em regiões desconhecidas, encontros inesperados e despedidas que vemos se aproximar por longo tempo - dias de infância, ainda inexplicados, os pais que tínhamos de magoar quando nos traziam um presente e não o entendíamos (era um presente para outro...), doenças de infância que começam tão estranhamente, com tantas metamorfoses profundas e difíceis, dias em quartos quietos e reservados, e manhãs junto ao mar, sobretudo o mar, os mares, as noites de viagem que passavam ruidosamente e voavam com todas as estrelas - e ainda não é o bastante se precisamos pensar em tudo isso. É preciso ter lembranças de muitas noites de amor, todas diferentes entre si, de gritos de mulheres dando à luz e de parturientes leves, brancas, a dormir, que se fecham. Mas também é preciso ter estado junto a moribundos, é preciso ter estado sentado junto a mortos no quarto com a janela aberta e os ruídos intermitentes. Mas ainda não basta ter recordações. É preciso ser capaz de esquecê-las quando são muitas, e é preciso ter a grande paciência de esperar que retornem. Pois elas ainda não são as recordações mesmas. Apenas quando elas se tornam sangue em nós, olhar e gesto, anônimas e indistinguíveis de nós mesmos, só então poderá acontecer que numa hora muito rara se levante e saia do meio delas a primeira palavra de um verso."

(OS CADERNOS DE MALTE LAURIDS BRIGGE, Pgs. 19 e 20)

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